segunda-feira, 28 de julho de 2008

r e s s a c a

Completamente bêbada. A cabeça era um vidro cheio de areia que ia de um lado para o outro, conforme ela olhava para os lados. O corpo fedia a cigarros e o desejo era vomitar a própria boca, expulsando aquele gosto de derrota que a fazia perceber o que tinha sido a sua noite.

Agora, sentada na cama, olhava em volta e não reconhecia as paredes do ambiente. Veio o medo do que teria feito em meio a tanta entorpecência. Olhou para o lado e não havia ninguém lá. Olhou para seu próprio corpo e estava vestida: a calça jeans, a camiseta preta e os brincos estavam intactos; apenas os sapatos não estavam mais no corpo. Olhou para o chão e eles estavam jogados, virados, cada um numa quina do quarto.

A janela denunciava o meio da tarde de dia quente carioca e seus olhos arderam. Coçou a cabeça e levou a mão ao nariz. Embrulho no estômago: seu cabelo parecia ter virado um cinzeiro velho. Dirigiu o olhar para a parede e reconheceu o cartaz do filme Laranja mecânica. Estava em casa, só não sabia como tinha chegado até ali.

A bolsa estava jogada no outro lado da cama e fedia tanto quanto suas mãos, roupas e travesseiro. A carteira ainda estava lá, o celular, a chave...

De onde teria chegado nesse estado? Vontade de chorar, como chegará na sala? Passou antes pelo banheiro e a imagem do espelho a deixou apavorada. Seus olhos estavam muito vermelhos por dentro e por fora, estavam manchados de preto, as remelas eram negras e a boca, completamente ressecada.

A cabeça doía ao simples movimento de escovar os dentes, como se carregasse uma caminhonete na testa. Tirou a roupa e o fedor ficou ouriçado no banheiro - teria virado um cinzeiro humano? Não tirou a calcinha e entrou no boxe. Ligou a torneira e quando a água estava na temperatura ideal, deu o passo que a levaria até o centro do chuveiro, deixando-se molhar por alguns segundos, ocupando sua audição somente com o barulho da água que caía sobre a sua cabeça fedorenta.

Como chegou a esse ponto? Imaginou a situação em que se encontrava antes de se encaminhar para a casa - que ainda não tinha conseguido se lembrar -, onde e com quem estava, como seus amigos puderam deixá-la assim? Quais eram os amigos que estavam ontem com ela? Tentou aquele velho exercício de quando perdemos alguma coisa e tentamos redesenhar todos os nossos passos, desde o início. Lembrou de ontem quando acordou e foi trabalhar. Almoçou naquele quilo barato e meio porcalhão, mas era dia de sopa e o tempero de lá era ótimo. Saiu do trabalho com duas amigas e um amigo e antes de chegarem no ponto de ônibus, pararam para um merecido chopp de sexta feira. Foi em casa, tomou banho e botou a calça jeans, a camiseta preta e os brincos de argola. Encontrou com a... ou foi com o...? E foi para aquele bar... ou boate...? Não fazia idéia. Lavou a cabeça três vezes e ainda sentia o cheiro do cigarro apagado. Lavou o nariz com sabonete, para tirar o cheiro, mas ele não saía. Nunca mais fumaria na vida, estava certa disso, mais uma vez.

Saiu do banho e se enrolou na toalha. Foi para o quarto e ligou o ventilador de teto, no modo de exaustão. Precisava se livrar daquele cheiro. Abriu a janela e se enxugou aos poucos. Se vestiu. Ensaiou os passos para chegar na sala sem que percebessem seu estado.

Quando deu bom dia para os pais e para a avó, todos sentados no sofá da sala vendo o jogo de vôlei, podia ler em seus olhares a mensagem de pena e desgosto por ser tão bêbada e apegada a uma sarjeta. Eles nem falavam mais nada. Responderam o bom dia e a mãe avisou que tinha pão fresco na mesa da cozinha e gelatina na geladeira. Tinha feito desde ontem, mas ela nem comeu quando chegou do trabalho.

Sentada à mesa da cozinha, de frente para a cesta de pães, bebia água num copo de 750 mL, sem coragem de ingerir mais nada que pudesse voltar com força, depois de misturado com aquele cheiro que insistia em permanecer em sua boca. Abriu a gaveta da cozinha e puxou uma cartela de analgésicos. Tirou duas cápsulas e as engoliu com um único gole d'água.

Ressaca moral. Só não sabia do que.

Ainda era meio-dia; mais tarde alguém ligaria para ela assim descobriria como tinha terminado uma noite daquela maneira.

6 comentários:

Bia Prado disse...

muito lindo.
e eu que to me sentindo assim sem nem ter bebido?
beijos,

Letícia disse...

"A cabeça doía (...) como se carregasse uma caminhonete na testa."

Nada melhor do que essa imagem que você criou.

Texto excelente, Carol!

Ana Paula disse...

Nossa, Carol!!! Muuuuuuuito bom!!!
Quantas histórias eu já não fiz a partir da sua na minha cabeça! Espetáculo!!!

Anônimo disse...

já senti isso variaaaaaaaas vezes, sempre me dizia, nunca mais vou beber, nunca mais vou fumar... mas nunca me obedeci hehehehe

Ju disse...

night bombante!


Ju

Simone Couto disse...

ótimo texto tb. adorei. Há coisas que fazemos quando bêbados que é melhor nem lembrarmos. Por isto, eu terminaria este texto no parágrafo anterior.
Bj,
Simone