Bicudo era o papagaio que eu ganhei de natal do ex-marido da minha tia, lembro de ter sido o melhor presente do mundo, ainda que ele não tivesse penas e emitisse um som estranho, nada parecido com "loro" ou "dá o pé". Me explicaram, então, que precisava de tempo pra ele falar, pras penas nascerem e que eu precisaria dar em conta-gotas a sua água, e com uma colherzinha mínima, alimentá-lo com uma papa de milharina.
O Bicudo cresceu, ficou verdão, todo lindo cheio das penas coloridas na ponta das asas, algumas laranjas, outras vermelhas, muitas amarelas. Elas se abriam todas em tardes quentes de fim de semana, quando a gente tomava banho de mangueira e soltava ele pelo quintal; adorava um banho; ficava parecendo aquele pinto que chegou para mim no natal, porque suas penas grudavam todas de molhadas.
Falava horrores, gritava, cantava
"tá tá tá tá na horaaaa va va vale tudo agoraaaa" e "atirei o pau no gato". Nesta última, ele empacava no -to do gato e nada o fazia parar. A cantiga de roda, na versão do meu Bicudo era mais curta e mais longa, ao mesmo tempo:
"aaaaaaaaaatirei o pau no ga to to to to ... to"
(ele ia diminuindo o volume até parar)
(ele ia diminuindo o volume até parar)
Um dia ele encaixou a cabeça na asa para dormir e eu entrei em casa aos prantos achando que a cabeça dele tinha saído. Meu pai explicou que ele dormia assim.
Morávamos em uma casa e o Bicudo ficava no quintal, num viveiro grandão - meu pai achava maldade colocar aquela correntinha no pé do bicho, assim como cortar as asas e minha mãe não queria deixá-lo na cozinha durante a noite - que o protegia dos gatos que pulavam o muro e cercavam o viveiro a madrugada toda, esperando um primeiro vacilo. Ele ficava imóvel. Não movia nem os olhos que cresciam e ficavam coloridos quando a gente fazia gracinhas com ele.
Bicudo "mordeu" o dedo do meu primeiro namorado, o Rodrigo. Avançou nele com força, saiu sangue, e minha primeira sogra na vida proibiu o filho de chegar perto da minha fera com asas. Mas eu avisei que ele não deixava qualquer um chegar perto...
Várias vezes ele fugia, nunca sabíamos como, fechávamos a portinha do viveiro com arame, com barbante, com pregador de roupa... e de repente ele estava embrenhado nas plantas do meu pai, completamente camuflado por todo aquele verde. Eu chorava, chamava ele, morria de medo dos gatos conseguirem pegá-lo.
O interfone da vizinha uma vez quebrou. As pessoas precisavam chamá-la aos gritos para que ela abrisse o portão e em pouco tempo lá estava ele gritando "Vera", a tarde toda. A criança do prédio dos fundos tinha um cachorro e o Bicudo latia igualzinho. Falava "Carol" e "lorô" em várias versões: voz grossa, reproduzindo a fala do meu pai, e esganiçada, igualzim a mim.
Rogerio e Rose se separaram e saímos da casa. Meu pai ia morar num quarto e sala, não dava para levá-lo. Minha mãe não o quis no apartamento; sempre foi contra bichos dentro de casa. Dona Déa, minha vó, levou o Bicudo pra morar com ela e cuidou dele até hoje de manhã, quando de repente, ele baixou a cabeça, deitou no chão da gaiola, fechou os olhos e esticou as patinhas.
Eu sempre achei frescura de "donos de bicho" essa coisa de chorar quando o bicho morre, de se apegar a bicho. E cá estou eu desabada com saudades do meu papagaio, uma das lembranças da minha infância.
(O domingo da minha infância já passou faz tempo, e o do Bicudo foi hoje de manhã cedinho.)