terça-feira, 27 de novembro de 2007

Bicudo

Curioso eu falar hoje sobre o domingo das coisas (post abaixo) e, ao chegar em casa, saber que meu Bicudo morreu.

Bicudo era o papagaio que eu ganhei de natal do ex-marido da minha tia, lembro de ter sido o melhor presente do mundo, ainda que ele não tivesse penas e emitisse um som estranho, nada parecido com "loro" ou "dá o pé". Me explicaram, então, que precisava de tempo pra ele falar, pras penas nascerem e que eu precisaria dar em conta-gotas a sua água, e com uma colherzinha mínima, alimentá-lo com uma papa de milharina.

O Bicudo cresceu, ficou verdão, todo lindo cheio das penas coloridas na ponta das asas, algumas laranjas, outras vermelhas, muitas amarelas. Elas se abriam todas em tardes quentes de fim de semana, quando a gente tomava banho de mangueira e soltava ele pelo quintal; adorava um banho; ficava parecendo aquele pinto que chegou para mim no natal, porque suas penas grudavam todas de molhadas.

Falava horrores, gritava, cantava
"tá tá tá tá na horaaaa va va vale tudo agoraaaa"
e "atirei o pau no gato". Nesta última, ele empacava no -to do gato e nada o fazia parar. A cantiga de roda, na versão do meu Bicudo era mais curta e mais longa, ao mesmo tempo:

"aaaaaaaaaatirei o pau no ga to to to to ... to"
(ele ia diminuindo o volume até parar)

Um dia ele encaixou a cabeça na asa para dormir e eu entrei em casa aos prantos achando que a cabeça dele tinha saído. Meu pai explicou que ele dormia assim.

Morávamos em uma casa e o Bicudo ficava no quintal, num viveiro grandão - meu pai achava maldade colocar aquela correntinha no pé do bicho, assim como cortar as asas e minha mãe não queria deixá-lo na cozinha durante a noite - que o protegia dos gatos que pulavam o muro e cercavam o viveiro a madrugada toda, esperando um primeiro vacilo. Ele ficava imóvel. Não movia nem os olhos que cresciam e ficavam coloridos quando a gente fazia gracinhas com ele.

Bicudo "mordeu" o dedo do meu primeiro namorado, o Rodrigo. Avançou nele com força, saiu sangue, e minha primeira sogra na vida proibiu o filho de chegar perto da minha fera com asas. Mas eu avisei que ele não deixava qualquer um chegar perto...

Várias vezes ele fugia, nunca sabíamos como, fechávamos a portinha do viveiro com arame, com barbante, com pregador de roupa... e de repente ele estava embrenhado nas plantas do meu pai, completamente camuflado por todo aquele verde. Eu chorava, chamava ele, morria de medo dos gatos conseguirem pegá-lo.

O interfone da vizinha uma vez quebrou. As pessoas precisavam chamá-la aos gritos para que ela abrisse o portão e em pouco tempo lá estava ele gritando "Vera", a tarde toda. A criança do prédio dos fundos tinha um cachorro e o Bicudo latia igualzinho. Falava "Carol" e "lorô" em várias versões: voz grossa, reproduzindo a fala do meu pai, e esganiçada, igualzim a mim.

Rogerio e Rose se separaram e saímos da casa. Meu pai ia morar num quarto e sala, não dava para levá-lo. Minha mãe não o quis no apartamento; sempre foi contra bichos dentro de casa. Dona Déa, minha vó, levou o Bicudo pra morar com ela e cuidou dele até hoje de manhã, quando de repente, ele baixou a cabeça, deitou no chão da gaiola, fechou os olhos e esticou as patinhas.

Eu sempre achei frescura de "donos de bicho" essa coisa de chorar quando o bicho morre, de se apegar a bicho. E cá estou eu desabada com saudades do meu papagaio, uma das lembranças da minha infância.

(O domingo da minha infância já passou faz tempo, e o do Bicudo foi hoje de manhã cedinho.)

... domingo.

Nosso domingo foi festa gelada, foi início; foi término. Foram fogos e foram medos. Pesadelo, esse domingo, véspera da segunda-feira que não precede a terça e muito menos a sexta.

Amanhã, por mais belo que esteja o dia, não tem praia e é necessário esperar a próxima semana. O domingo das coisas, no entanto, dói mais porque as coisas, quando chegam no domingo, não ressurgem 6a. feira - elas não são cíclicas, eu aprendi isso.

As coisas acabam, dóem e o corpo cansa, a casa cai, os olhos molham.

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

"Ricifi"...

Chego carregada de tensão. Estou no solo do lugar que, desde o primeiro dia que vi de cima, me localizei no mundo. O pouso é estranho e barulhento, como se a asa do avião chegasse antes das rodinhas e isso dá medo. Acordo com a mão do meu amigo me protegendo, como uma mãe a seu filho no banco do carona, no momento de uma freada brusca.

De malas em punho, estou entre amigos de falas musicais, trazendo novos elementos ao meu vocabulário, me recebendo de braços abertos, ainda que sem o Corcovado. Bem vindo a Recife, a placa dizia.

(...)

A água é quente e rasa, passando por cima de uma areia mais escura e bem fina. Muitas algas passam pelas pernas, que a princípio, assustam, mas depois abraçam. O menino do bar está a léguas de distância, apoiado num burrico, conversando com um amigo e nem nos vê chegar. Cariocas tensos acenam indignados para chamá-lo e depois que ele percebe, termina a conversa e vem caminhando normalmente. Pois não? Queremos uma mesa. Só uma? Sim, uma mesa e três cadeiras. Só? Não vão querer beber nada? Sim, traga uma cerveja e o cardápio. A calma, a princípio, irrita, mas depois contagia. E daí que só trouxeram uma latinha de cerveja? E daí que pedi guaraná e veio pepsi? Bastava olhar em volta e entrar naquela água morninha, que pouco importava se não amenizava o calor do sol. Dá para boiar e se deixar levar pela correnteza, olhando para o inacreditável céu mais do que azul, estampado por folhas de palmeiras (ou seriam coqueiros?), muitas vezes rindo ao assustar-se com algum tronco trazido pelo caminhar do rio.

Saindo da água, noto que ela alcançava a metade dos pés da cadeira, sinalizando que em pouco tempo precisaríamos sair, porque assim ela determinou. Com os dedos das mãos enrugados, chamo os amigos para acompanhar minhas pegadas naquela areia mais afastada, que parecia uma mousse ou uma cobertura de bolo de festa de criança. O pé, ao afundar, é massageado como numa sessão de shiatsu ou coisa parecida. É como pisar em doce de leite, se fôssemos pequenos o bastante para mergulhar os pés dentro de uma latinha marrom. E a impressão do pé demora a sair da areia, com a mesma calma do mocinho do bar, ao trazer a conta e limpar a mesa.

A maré subiu e a mesa está quase imersa. Caminho em direção ao carro, olhando sempre para trás, inspirando forte, tentando segurar o máximo de segundos o ar daquele berçário de cavalos marinhos.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Malas prontas

Indo para onde eu quero estar.
Sempre.
Esquecer um pouco, trazendo coisas para lembrar.
Descanso, amigos, areia, mar.

Sempre passando antes pelo céu, medo que antecede prazer de chegar onde se quer.

Mas tem que ser assim; tudo é desse jeito.

Recife, estou chegando, e a mala não está vazia.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Masoquismo

"Lá, ela se sentia como nos sentimos à noite, no meio de um sonho que reconhecemos e que recomeça: temos certeza de que ele existe, temos certeza de que vai acabar, queremos que acabe porque temos medo de não poder suportá-lo, e queremos que continue para sabermos como vai acabar"
Trecho de História de O, de Pauline Réage



"Se se tem alguma experiência social, é fácil perceber que boa parte das relações afetivas entre as pessoas tem fortes componentes sadomasoquistas, em geral, negados pelos participantes da boca pra fora."
Paulo Francis, na contracapa.


Foto da capa: Lissandro Garrido

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

meu mundo se agita quando eu durmo

Entrei no ônibus e percebi que havia esquecido minhas calças. Estava com a minha camiseta verde e de calcinha, sem calça nenhuma. Não tinha como descer do ônibus, e eu ia puxando a barra da blusa, esticando-a até o joelho. Não podia descer mesmo do ônibus. Tinha uma mulher com uma canga e eu pensei em pedir emprestada, mas como chegar para uma estranha e dizer que se está sem calças para justificar a doação da canga? E como eu ficaria dentro do ônibus até o destino final, qualquer que ele fosse? Não lembro qual era a linha, só sei que era vermelho e eu peguei ali no Humaitá. 438 ou 157, suponho eu. Pisquei os olhos e lá estava eu, só de blusa verde, chegando em casa que não era mais a casa que eu moro atualmente. Um homem de moto me seguia e parou na minha frente com umas flores para me oferecer. Você não lembra de mim? Não, desculpe., eu respondi, esgarçando a minha camiseta até o joelho. Eu sou seu vizinho, moro no 302... nossa, você mora na porta grudada na minha? Pois é, você nunca reparou em mim, eu vim te chamar para sair, fica com meu telefone. Essas flores são para você. Mas eu não pude aceitar o mimo do vizinho; precisava segurar a minha camiseta.

(Outro dia eu tava pelada na piscina, sentada na borda com os pés na água, tentando me cobrir com uma canga e cada vez que eu cobria o peito, descobria o resto. Não podia nem me levantar. Não tinha como sair dali, nem sabia como tinha chegado desse jeito. E tão inexplicável quanto, foi a minha aparição na cozinha da minha vó, me avisando que minha bisavó Nina morreria dia 30 de novembro. Mas ela já morreu há 17 anos atrás, no dia que veio a minha primeira menstruação.)

Meu mundo onírico é um filme de Buñuel.

E por que o vizinho não veio me oferecer um sarongue?

sábado, 10 de novembro de 2007

Gente é algo muito estranho.

Entrei no 438 e, como de costume, fui correndo sentar na janela da ala direita. Duas meninas conversavam no banco atrás de mim.
- Nossa, olha ele!
- Não disse? Ele tá sempre nesse ponto, mas por que ele não vai entrar no ônibus?
- Vem gatinho, vem... entra aqui, tá na hora de você ir pra casa.
- Lá pra casa, né!
(Gargalhadas)

O ônibus arrancou, rumo ao mergulhão. E parece que as duas mudaram de assunto - ou apenas retomavam a conversa interrompida pela aparição do rapaz que estava no mesmo ponto que eu.

- Olha, amiga. Você sabe que eu considero todos da sua casa como minha família. A sua mãe pra mim é minha tia. Você pra mim é minha prima. Não digo irmã, porque aí eu acho exagero. Mas são da minha família. Mesmo.

- É, eu também.

- Mas eu preciso te falar. Adoro a tia Arlete, sua mãe é uma fofa, já disse, é uma tia pra mim. Mas a sua mãe é uma fraca. Ela é uma fraca e te dá muitos maus exemplos nesse sentido.

(Fez silêncio no ônibus e eu desisti de fingir que estava lendo o livro que segurava. Precisava ver onde isso ia parar.)

- Você diz emocionalmente, né?

- É, emocionalmente!

- É, isso ela é sim.

- Por exemplo, ela ainda não digeriu a morte do Sérgio! O Sérgio morreu em 2000 e a gente tá em 2007!

- Ah, mas ela tá bem melhor agora.

- Não tá não. Ainda guarda todos os cds do Renato Russo porque ele gostava e não pode ouví-los para não chorar. Cara, morreu, acabou! Não pode. A sua mãe não levanta e você é igualzinha!

- Ah, também não é assim, foi foda a morte do Sérgio...

- Mas já foi. Ela não morreu, ela tá viva. E eu sei que você vai ficar assim quando alguém da sua família morrer.

- Isola!

- Olhaí! Tá vendo? Já sei que quando me falarem: a tia Arlete morreu eu vou falar: já providenciaram o enterro da Gabriela? Porque você vai se suicidar!Ai, eu já sei que vou ter que te esbofetear tanto quando a sua mãe morrer...

- Por que?

- Porque você vai dar escândalo, vai ficar gritando "Por que! Por que!" "Ela não podia ter morrido!"

(Gente, eu preciso ver a cara dessas pessoas. Mexo no cabelo tentando dar uma viradinha de leve e tentar avistar os semblantes, mas não rola.)

- Hahaha.

- É mesmo! Olha, graças a Deus que a minha mãe me criou pra vida, e não pra ela. Sempre pude ir a todos os lugares que quis. Ela sempre me deixou cair sozinha. Sempre esteve por perto para me ajudar a levantar. Mas antes falava: tenta sozinha, filha. Levanta sozinha. Agora, quando eu vi aquele piti que você e a tia Arlete fizeram por causa de uma espinha de peixe, eu não acreditei!!! Você quase chorou!!!

- Ah, mas foi foda aquela espinha!

- Olhaí! Tá vendo? A sua referência é a sua mãe que é uma fraca, você não pode ser igual a ela, Gabriela! Eu tenho até medo de que o seu pai ache que eu sou uma enxerida.

- Que nada, minha família toda te adora.

- Eu não saio mais da sua casa!!!

- Imagina. Sabe porque eles não acham? Senão minha mãe já tinha me falado alguma coisa.

- Eu tenho vergonha é do Alan. Outro dia ele atendeu o telefone e eu nem falei com ele, só perguntei a Gabriela está? Ele até brincou comigo, mas cara, que engraçado, morro de vergonha do Alan.

- Você é a amiga que meus pais mais gostaram até hoje.

- Gente, que vergonha do Alan!

(eu cá comigo: a amiga louca tá doida pra dar pro Alan)

- Minha mãe sempre fica tranqüila quando eu digo que vou sair com você.

- É por que ela já viu. Já viu que eu tenho ju-í-zo!

- Mas eu acho que a sua mãe também gosta de mim, né? A gente ficou amiga em tão pouco tempo, né?

- Você não pode ser fraca. Ai, a gente ainda não tá de férias, né. Já ia perguntar se você ia lá pra casa agora.

- Ah, mas daqui a pouco a gente tá de férias. Mas é sério, minha família te adora.

- Cara, eu só tenho vergonha do Alan. Ih, vamos levantando porque senão a gente não chega na porta a tempo. O ônibus lotou!

- Bora.

Botei a cara fora da janela para enfim conhecer as figuras.

O ônibus é um mundo.

E o mundo é um circo.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

autocalendário

Hoje é seu aniversário e eu já começo a felicitá-lo bem antes de hoje chegar. Minha noção de tempo anda completamente aleatória e hoje, para mim, não faz tanto tempo do dia que já tem quase um ano. Como se tivesse sido ontem a última vez a ouvir a sua voz. Passo o dia com você ao meu lado, escondendo o meu pesinho de porta e dançando empolgado em alguma boate da cidade. O tempo está confuso para mim e é marcado apenas no meu corpo, pelas dores de estômago, águas nos olhos e comprimidos debaixo da língua. O calendário me assusta e o vazio me lota de modo a doer meus sentimentos, se é que podem doer, os próprios.
Feliz aniversário, meu amor.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

pede para soltarem, por favor? soltar o que, menina? tão apertando, tem uma mão apertando forte, aqui. aqui onde? aqui, entre os dois seios. vou vomitar se não largarem, dói demais! mas não tem mão nenhuma. tem sim, e parece que eu engoli algumas pedras de gelo inteiras, mas não me lembro. você bebeu alguma coisa com gelo? não lembro! será que engasgou com um pedaço de carne? outro dia aconteceu isso com uma amiga minha e ela teve que enfiar o dedo lá dentro pra empurrar. não, não. não comi. é uma mão e tá apertando forte. já fez massagem? não, não fiz, não passa de jeito nenhum: já fiz tosse, já bebi água... você tá chorando? tô, eu disse, dói muito! tenta pensar no que pode ter causado essa dor pra eu poder te ajudar. Eu tento, mas minha cabeça parece aquele quadro guernica, é uma coisa atropelando a outra, pede pra soltarem? já sei. toma isso aqui que passa, você vai ver.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

inércia

INT. QUARTO DA CAROL. AMANHECENDO.

Despertador do celular rosa choque ao lado da cama japonesa insiste em TOCAR. O relógio do aparelho marca 5:15 a.m..CAROL está deitada na diagonal da cama de casal, vestida com uma camisola com estampa de sapo. Ela desliga o despertador e senta por alguns segundos na cama. Esfrega os olhos e coça a cabeça. Levanta.


CORTA PARA

INT.BANHEIRO. AMANHECENDO.

CAROL escova os dentes, ainda de camisola. Senta na privada e, enquanto faz XIXI, ela cochila por dois segundos. Abre o olho quando a cabeça tomba e puxa o rolo de papel higiênico à sua esquerda.


CORTA PARA

INT. QUARTO DA CAROL. AMANHECENDO.

CAROL pega o celular que está no chão e vê que são 5:21. Tira a camisola, veste sua roupa de ginástica e calça seu tênis de corrida. ESPIRRA o desodorante antes de arrumar a mochila com a roupa do trabalho. Pega qualquer vestido, dobra-o e guarda na mochila.

[FADE OUT]

[FADE IN]

INT. QUARTO DA CAROL. MANHÃ.

CAROL está deitada na diagonal da cama de casal, vestida com sua roupa de ginástica, inclusive os tênis. Ela acorda, senta por alguns segundos na cama. Esfrega os olhos e coça a cabeça. Levanta. Olha para sua roupa e depois para o celular. São 7:30.


CAROL
Putaquiupariu. Perdi a hora.

CARMEM

Hoje não era um dia especial. Simplesmente mais um dia na vida de Carmem, que acordava de mau humor para ir trabalhar, quando na verdade queria ler na praia e caminhar no calçadão.

Mas era preciso sair para o trabalho.

Sentou no sofá e ao dar a primeira mordida em sua ameixa, constatou que tinha algo de diferente naquele mesmo dia que estava começando. Nossa, estou com tempo para tomar café... O relógio, porém, jogava-lhe um balde de água fria mostrando que dali a 20 minutos ela precisava já estar sentada em sua cadeira completando aquelas planilhas cujos significados nem ela saberia responder.

Não escovou os dentes depois da ameixa, o que já proporcionava um ótimo passatempo para o curto trajeto diário: tentar, empurrando com a língua, tirar os fiapos da casca que prendiam entre aquele dente que tinha um espacinho. (Fizera um tratamento de canal e sempre precisava recorrer a palitos de dente para limpá-lo, quando estava sozinha em casa).

Talvez fosse esse o maior talento de Carmem: a distração. Pena que fosse isso um defeito nos tempos de hoje. Aliás, esse sempre era o seu pensamento ; teria nascido errada, de alguma maneira, só não sabia qual era.

Enquanto tentava descobrir, ia levando a vida, entupindo-se de remédios, que, a cada cura, traziam uma nova mazela. O que você tem, Carminha? Estou triste, mas já estou me tratando. Triste? Mas Por que? Aconteceu alguma coisa? Não, nada. De vez em quando isso acontece. E a língua voltava ao dente do canal, mas agora não tinha casca de nada para o tempo passar.

Carmem agora estava no hospital e pode-se dizer que a insônia era óbvia. A mãe não fazia xixi sem que ela empurrasse o cabide do soro e despejasse o conteúdo da comadre na jarra com medidor para que a enfermeira o "desprezasse" quando a marca de um litro era alcançada. Sua mãe precisava dormir e ela estava ali para isso. Hospital. Que merda de lugar. É um cheiro, uma cor pastel – tudo é pêssego ou azul bebê ou amarelinho num hospital – um silêncio. Praticamente uma prisão. Carmem tentou se lembrar de uma visita que fizera num hospital a alguém que estivesse por algum motivo voluntário como um parto ou cirurgia plástica. Impossível. Lembrou da mulher do pai com metade da cabeça raspada por conta de uma inserção de dois grampos no cérebro que a obrigavam a apresentar um atestado sempre que fosse viajar de avião. Já havia se distraído vendo pela terceira vez um filme, uma entrevista na televisão, zerado duas vezes alguns joguinhos de computador e celular. Até o trabalho que levou para casa chegou a distraí-la. E a enfermeira com tererê não chegou à meia noite para a nebulização, como havia prometido.

Carmem não se agüentava mais. Estava chata e desinteressante, acompanhando o ritmo de sua vida. Eram amores desfeitos, confusões, remédios para dormir, tristezas diárias, rotinas bipolares. Carmem precisava ser útil e ficar no hospital com sua mãe só a lembrava de que não tinha muita utilidade, já que quase vomitava ao se deparar com a urina que precisava jogar da comadre na jarra com medidor. É o xixi da sua mãe!, protestou a recém operada. Carmem agora era uma filha com nojo do mijo da própria mãe. E se os pontos inflamarem? E se ela urrar de dor enquanto eu estiver dormindo? Não tomarei a medicação hoje. É melhor que eu não durma. Não correrei esse risco.

Dor de estômago.