quinta-feira, 1 de novembro de 2007

CARMEM

Hoje não era um dia especial. Simplesmente mais um dia na vida de Carmem, que acordava de mau humor para ir trabalhar, quando na verdade queria ler na praia e caminhar no calçadão.

Mas era preciso sair para o trabalho.

Sentou no sofá e ao dar a primeira mordida em sua ameixa, constatou que tinha algo de diferente naquele mesmo dia que estava começando. Nossa, estou com tempo para tomar café... O relógio, porém, jogava-lhe um balde de água fria mostrando que dali a 20 minutos ela precisava já estar sentada em sua cadeira completando aquelas planilhas cujos significados nem ela saberia responder.

Não escovou os dentes depois da ameixa, o que já proporcionava um ótimo passatempo para o curto trajeto diário: tentar, empurrando com a língua, tirar os fiapos da casca que prendiam entre aquele dente que tinha um espacinho. (Fizera um tratamento de canal e sempre precisava recorrer a palitos de dente para limpá-lo, quando estava sozinha em casa).

Talvez fosse esse o maior talento de Carmem: a distração. Pena que fosse isso um defeito nos tempos de hoje. Aliás, esse sempre era o seu pensamento ; teria nascido errada, de alguma maneira, só não sabia qual era.

Enquanto tentava descobrir, ia levando a vida, entupindo-se de remédios, que, a cada cura, traziam uma nova mazela. O que você tem, Carminha? Estou triste, mas já estou me tratando. Triste? Mas Por que? Aconteceu alguma coisa? Não, nada. De vez em quando isso acontece. E a língua voltava ao dente do canal, mas agora não tinha casca de nada para o tempo passar.

Carmem agora estava no hospital e pode-se dizer que a insônia era óbvia. A mãe não fazia xixi sem que ela empurrasse o cabide do soro e despejasse o conteúdo da comadre na jarra com medidor para que a enfermeira o "desprezasse" quando a marca de um litro era alcançada. Sua mãe precisava dormir e ela estava ali para isso. Hospital. Que merda de lugar. É um cheiro, uma cor pastel – tudo é pêssego ou azul bebê ou amarelinho num hospital – um silêncio. Praticamente uma prisão. Carmem tentou se lembrar de uma visita que fizera num hospital a alguém que estivesse por algum motivo voluntário como um parto ou cirurgia plástica. Impossível. Lembrou da mulher do pai com metade da cabeça raspada por conta de uma inserção de dois grampos no cérebro que a obrigavam a apresentar um atestado sempre que fosse viajar de avião. Já havia se distraído vendo pela terceira vez um filme, uma entrevista na televisão, zerado duas vezes alguns joguinhos de computador e celular. Até o trabalho que levou para casa chegou a distraí-la. E a enfermeira com tererê não chegou à meia noite para a nebulização, como havia prometido.

Carmem não se agüentava mais. Estava chata e desinteressante, acompanhando o ritmo de sua vida. Eram amores desfeitos, confusões, remédios para dormir, tristezas diárias, rotinas bipolares. Carmem precisava ser útil e ficar no hospital com sua mãe só a lembrava de que não tinha muita utilidade, já que quase vomitava ao se deparar com a urina que precisava jogar da comadre na jarra com medidor. É o xixi da sua mãe!, protestou a recém operada. Carmem agora era uma filha com nojo do mijo da própria mãe. E se os pontos inflamarem? E se ela urrar de dor enquanto eu estiver dormindo? Não tomarei a medicação hoje. É melhor que eu não durma. Não correrei esse risco.

Dor de estômago.

Um comentário:

Dona Baratinha disse...

ai, bichinha. vc tá mesmo bem que nem eu nesse momento. tudo acaba sendo sobre o nosso próprio sofrimento, como se a gente precisasse colocá-los em todas as situações para ver se gasta. Funciona, prossiga. Algum remédio tem que ter, certo? além do que, estimula seu talento. bjs