sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Para onde?

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?

Está sem mulher,
está sem discurso,
está sem carinho,
já não pode beber,
já não pode fumar,
cuspir já não pode,
a noite esfriou,
o dia não veio,
o bonde não veio,
o riso não veio,
não veio a utopia
e tudo acabou
e tudo fugiu
e tudo mofou,
e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,
seu instante de febre,
sua gula e jejum,
sua biblioteca,
sua lavra de ouro,
seu terno de vidro,
sua incoerência,
seu ódio – e agora?

Com a chave na mão
quer abrir a porta,
não existe porta;
quer morrer no mar,
mas o mar secou;
quer ir para Minas,
Minas não há mais.
José, e agora?

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Carlos Drummond de Andrade recitando o poema

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A vida é tão rara...

Eu ando meio cansada. Cheia de sono nas horas erradas, agitação descabida, humor oscilante, impaciente.

Pensativa, porém.

Pessoas em volta, antes conhecidas, são agora estranhas e, muitas vezes, enfadonhas. Faltam argumentos e vontade de criá-los para me relacionar com o mundo. Nada de dramas, sensações de fim, de dor. Não peço mais afago às derrotas. A seta aponta para cima, a espontaneidade tenta me guiar e - graças! - muitas vezes, consegue.

Os amores me escapam, o trabalho me entedia; dormir e acordar têm sido exercícios diários, muitas vezes transformados em tarefas árduas e sem data para acabar.

Aí vem uma calma, um vento baiano soprando aqui dentro, uma voz tranquila, dizendo que a hora passa, o dia cai, que tudo acaba. Eu respiro, ouço a noite, subo a ladeira entoando o mantra.

Troco o "tudo de novo amanhã" por "tudo novo amanhã", mesmo que não venha, regando os sentimentos novos, que são melhores que os antigos, ainda que esses últimos tenham servido para brotarem os que eu quero.

Tudo se interliga, uma coisa chama a outra.

Tudo, tudo, tudo vai dar pé.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Melhor que caminhar vazio

Caiu como uma luva esse conto. No dia que foi, na hora que foi, parecia estar esperando ser lido por mim. Gana de compartilhar com todos, da mesma forma que fizeram comigo, trazendo essa maravilha às minhas mãos.
Espero que gostem.

Dois ou três almoços, uns silêncios.
Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".
_ Por Caio Fernando Abreu_

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

(Publicado no jornal "O Estado de S. Paulo", 22/04/1986)




Sonhos, na voz do Moska

Realizando desejos

Estava sozinha, ainda que com uns 5 ou 6 amigos. Era show e ela dançava aleatória, sem se preocupar muito com o que tinha em volta. Deve ter ficado alguns minutos rodando em volta de um ponto qualquer, pois quando levantou a cabeça para prender os cabelos num rabo de cavalo, se deparou com um homem parado, em frente a ela, observando-a dançar.

- Não acredito...
- Nem eu. Cheguei no Rio hoje, meio de supetão. Não deu para avisar nada...
- Não sei o que dizer.
- Nem eu. Vamos dar um abraço, para começar?

Ela agora estava no meio de um descampado silencioso. Não havia mais nada nem ninguém, seus sentidos todos estavam focados naquele homem que era real a partir do all star, passando pelas calças jeans largas seguidas das blusas sobrepostas, chegando até o cavanhaque, que, na direção do seu olhar, iniciava o rosto que há anos gostaria de tocar.

Pensou em como esse encontro era, até então, improvável. O quanto o abraço que estava acontecendo a cada milésimo de segundo era digno de pedido de gênio da lâmpada. O quanto era muito mais fácil ela não estar ali, naquele lugar, naquele show. Não gostava da banda e cedeu apenas por querer muito sair para dançar naquela noite.

Tratava-se de um encontro inesperado, por qualquer ângulo que alguém poderia analisá-lo.
Abraçava-o sem ter coragem de largar por não fazer ideia do que deveria vir depois do abraço. Um beijo apaixonado? Uma gargalhada feliz, uma piada sobre o que aquilo ali significava? Sentia as costas, o peito, a barriga. Um restinho (ou um início?) de barba, encostando sua testa.
Desvencilharam os braços, mas os olhos, úmidos, admiravam-se.

- Como você veio parar aqui? Que bom isso, deve ser mentira...
- Eu vim porque cheguei e não te vi online. Chico e Carla vinham para cá e eu acabei topando. Parece mesmo mentira. Eu lembro de você ter falado que achava esses caras meio pela-sacos.
- Eu acho. Acabei vindo porque vários amigos ligaram chamando e eu achei que poderia ser uma boa opção para distrair.

Era nítido que eles não sabiam o que fazer e prolongaram o quanto podiam aquela série de motivos que os levaram a estar naquele show, naquele dia, na mesma fileira.

Até que não puderam mais e agora estavam ali, de carne, osso e nervosismo. E se olharam em silêncio.

domingo, 23 de agosto de 2009

sábado, 22 de agosto de 2009

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Os dois sentidos

Dessa vez, o tato passou longe. Apenas olhares separados por um cristal líquido, justamente o mesmo que propiciou o encontro.

Ouvidos e boca já haviam ligado os dois - sem sussurros, beijos ou lambidas - e um conhecia o êxtase do outro já há alguns anos, sem cheiro, sem mãos.

Um sentimento indefinível, perfeito pela distância, temperado pela impossibilidade da concretização do que deveria ser, do que queriam que fosse. Uma angústia de não saber do gosto, um prazer por gostar tanto daquele corpo que carregava um sorriso, um olhar, um tesão.

Sentimentos confusos, patéticos, até. Se lhe contassem essa história como experiência alheia, teria rido, sem dúvidas. Mas vivia emoções adolescentes, sofrimentos inexplicáveis, urgências apaixonadas. Precisavam ter-se, urgiam por um encontro. O corpo gritava, explodia, suava. Bastava que o milagre os pusesse lado a lado, pois o resto estava no ar, dentro de cada um.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Cariocas são bacanas...

Quinta-feira. Dezoito horas e dez minutos. Metrô da Cinelândia. Direção Zona Norte.

Primeiro trem: im-pos-sí-vel.

Segundo trem: há de ser esse. Não há tempo hábil para mais uma espera. O terapeuta me espera, na Tijuca, às dezenove.

Muita gente.

Estação Carioca, sensação de arrastão, de muvuca do foo fighters no Rock in Rio. Pessoas dominó, dois ou mais corpos ocupando o mesmo espaço - não existe lei da física no metrô a essa hora.

A voz eletrônica solicita, automática:
Prezado cliente. Ofereça ajuda aos idosos, gestantes e pessoas com necessidades especiais

A imprensada cliente aqui pensa que todos ali, sem exceção, naquele momento, possuem necessidades especiais – respirar é preciso e impraticável. Olho para baixo e não vejo pés, apenas um breu. Medo. Rezo um pai-nosso. Outro. Mais um. Mentalizo alívio.

Alívio, alívio, alívio, alívio. Alívio, alívio, alívio, A-lí-vi-o.

(essa sou eu, usando o mesmo método que tenho praticado para as fortes cólicas menstruais irem embora sem remédio.)

Silêncio espremido no carro do metrô.

Até que, como num quadrinho do Ziraldo daqueles de várias cabecinhas iguais e um balão que não se sabe de qual bolinha saiu, ouve-se uma voz:

- Aê, meu amigo, tu não lava o suvaco não? Sacanagem, bota um alho aí dentro dessa jaqueta que aqui tá foda, com esse braço levantado.

E todos riem, até quem não se conhece. Eu também. Um viva para a descontração carioca.

Estação Central. Respirar fica mais fácil.

Estação Estácio. Já posso me movimentar normalmente.

.Alívio.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Masturbação digital

Horas lendo posts passados do próprio blog.

Necessário, apenas.

De novo e mais uma vez.

Respirou alto em sinal de cansaço e olhou em volta com ar de poucos amigos. Já não queria mais ser tão simpática. Precisava sair dali e nada parecia colaborar com suas necessidades. Resolveu, pela décima quinta vez, naquela semana, que sua vida urgia por mudanças. Pegou sua mochila, se despediu de todos e saiu, deixando o computador ligado, as folhas espalhadas pela mesa, os colegas incrédulos e nitidamente constrangidos.

Não esperou a chefe ir atrás dela, não chamou por nenhuma amiga, não passou antes no banheiro. Chamou o elevador e como ele não chegou em dois segundos, desceu pelas escadas correndo, sentindo, apática, algumas lágrimas que desciam por seu rosto, gelando o caminho por onde passavam. Ao passar pelos seguranças e pela recepcionista que lhe deram, em vão, boa tarde, a moça chegou até a rua. Sentiu o sangue voltando a circular e a respiração funcionando novamente. Precisaria, agora, bancar seu dia de fúria.

Juntou as moedas espalhadas na bolsa e entrou no primeiro ônibus que a levaria para casa. Precisava fazer as malas, pois não era apenas um espaço que combatia com seus desejos.

O corpo ainda é pouco.

Acupuntura, psicanálise, macumba.
Simpatia, tarja preta, infusão, ayurvédica.
Cerveja, vinho, tchurus, cachaça.
Terapia corporal, da palavra, shiatsu, spa, meditação.
Workshop, batepapo, 102.

E o pulso, ainda pulsa.