quinta-feira, 5 de março de 2009

des tração

Tinha que entregar o projeto final até as 16:00 de amanhã. Mas não conseguia se concentrar e ainda faltavam algumas muitas páginas. E porra, por que tudo isso? Aquele esforço seco, parto entupido, palavra que não vinha. Carmem não conseguia se concentrar. Copão de guaraná ao lado, palitinho preso no olho. Pensava na vontade de trabalhar de bermuda, de correr na praia às nove da manhã e ir ao cinema no horário dos velhinhos. Passava a língua no espaço entre os dentes e ficava prendendo a ponta da língua por lá. Amanhã ia ficar dolorida, mas já tinha viciado no movimento. O arcondicionado ia direto nas costas da cadeira do computador.

Elaborou, mentalmente, um e-mail para o orientador, pedindo mais um dia. Aí lembrou que ela já estava no mais um dia que já havia sido pedido. E não podia perder a credibilidade, precisava entregar isso, acabar logo com essa masturbação acadêmica e ir para "os finalmentes", cujo significado era completamente desconhecido.

[Água com gelo. O caminho do quarto à cozinha era como um inferno na Terra: calor até não poder mais, bafo quente no corpo, desconforto físico. Desconforto melhor do que aquele que o arcondicionado não ajuda, nem no máximo.]

Pensou que a amiga tinha razão: Chico Buarque acertou em cheio quando chamou Deus de cara gozador e lembrou do Rei de Havana, que cagava pra Deus, não acreditava em porra nenhuma, nem nele próprio.

Carmem estava de saco cheio e parou para se alongar. Lembrou de uns exercícios que a amiga zen tinha ensinado para os momentos de angústia e dor nas costas. Mas doía tudo, até na hora do exercício. Riu sozinha imaginando a cena esdrúxula de uma mulher com pijama florido se esticando e respirando alto, no meio do quarto às três da manhã.

Riu sozinha. Gostou de rir sozinha e riu mais um pouco, só de brincadeira, mas antes preferiu se assegurar de que todos na casa estavam dormindo; não queria correr o risco de alguém abrir a porta e flagrá-la nessa situação. Riu por alguns minutos, rindo do riso, rindo do esdrúxulo, dos pijamas floridos, do texto sem nexo que estava escrevendo. Riu da dor nas costas, pois ela aumentava quando o corpo contraía com as gargalhadas silenciosas e levantou os braços, mexendo meio louca.

Começou a dançar sem música na cabeça, só dançar, considerando que dançar seja se mexer em algum ritmo. Dançou devagar, para não acordar ninguém: nada de movimentos ou pisadas bruscas, deixando que seja lá qual fosse o ritmo inventado, tomasse conta daquele pequeno círculo vazio que seu quarto disponibilizava.

Carmem dançou por dez minutos, rindo. Rindo da dança, do exercício zen, de si mesma. Ficou por alguns minutos exclusivamente em sua companhia. Ficou em si, entrou nela sem perceber. Fez movimentos com a cabeça, girou os pés, exercitou o maxilar, se distraiu, de novo.

Voltou a sentar em frente ao micro com o vento gelado nas costas e se assustou com a hora, mais uma vez.

Um comentário:

Letícia disse...

Deus adora brincadeira mesmo: quando entra numa de zoar, sai de baixo!